terça-feira, 29 de agosto de 2017

A verdadeira cozinha algarvia

Para além da descrição dos locais visitados, que vou fazendo nestas crónicas, para ilustrar devidamente cada viagem não posso deixar de mencionar a oferta gastronómica que cada local proporciona. Embora este não seja um espaço para analisar e classificar restaurantes, em certas viagens surgem restaurantes que acabam por ser relevantes para a experiência vivida e, nesses casos, acho importante mencioná-los nas minhas crónicas. 

No entanto, muitas vezes, a gastronomia não se revela importante e a opção por um restaurante é meramente aleatória e, nesses casos, acabo por não fazer sequer qualquer referência. Mas existem alguns lugares onde a escolha dos restaurantes e da sua oferta é fundamental para apreciarmos devidamente o local visitado. 

É sobretudo em Portugal que a escolha dos restaurantes me vai merecer mais referências e, neste caso, vou referir-me particularmente ao que se pode comer na região do Algarve. 

O Algarve tem uma oferta enormíssima de restaurantes e, há dois anos atrás, tive a oportunidade de publicar uma crónica relativa a um dos melhores restaurantes algarvios. A crónica chamou-se “Uma experiência gastronómica”, e referia-se ao Vila Joia, um dos restaurantes mais caros do país e o primeiro a ser contemplado com duas estrelas Michelin. Mas sendo um restaurante algarvio também não é, de todo, um restaurante de comida algarvia. E o que pretendo fazer agora é descrever a minha experiência de degustação da comida típica algarvia, dos verdadeiros sabores da região. E, para tal, experimentei vários restaurantes mas apenas um me convenceu verdadeiramente. 

Esta crónica vai falar sobretudo da nossa experiência numa noite de final de agosto em Estômbar, no restaurante “O Charneco”... um nome a fixar. 

Mas vou ainda começar por falar de outras experiências, de outros locais e de outros tempos, algumas até mal sucedidas. 

Ao vasto menu que a degustação no Charneco nos ofereceu, e que irei descrever mais à frente, acrescento agora três pratos, que são bastante comuns na região do Algarve, e que poderiam figurar num menu de uma espécie de top 10 da comida algarvia. 


E começo pela Sardinha Assada. Não a provámos no Charneco e nem é sequer uma iguaria regional, visto que a podemos saborear por toda a nossa costa, e basta lembrar a época dos Santos Populares, quando a sardinha é rainha, ou, por exemplo, a sardinha que se come junto à lota de Matosinhos. Mas aqui a sardinha come-se principalmente em Portimão. Junto à foz do Arade, atravessamos um arco que nos leva à praça dos restaurantes, com um grelhador comunitário onde todos levam o seu peixe para assar. Sugiro dois restaurantes, o Peixarada e o Dona Barca. Este último é muito mais famoso, o que torna mais difícil arranjar lugar e, por isso, acabo quase sempre por escolher o Peixarada. Não sei se é ali que se come a melhor sardinha do Algarve, e certamente também dependerá da própria sardinha estar mais seca ou mais gorda, mas o que vos posso dizer é que ali se comem umas belas sardinhas e não há Verão em que eu não passe por Portimão para uma sardinhada.


Outro prato característico da região algarvia, e que também não estava incluído no menu daquele dia, é o Arroz de Lingueirão, típico sobretudo na Ilha de Faro, e também imperdível nas nossas viagens ao Algarve num dos restaurantes da ilha.


Para terminar as referências gastronómicas que não foram contempladas no menu daquele dia no Charneco, mas que são experiências imperdíveis da gastronomia algarvia, falta mencionar o Franguinho da Guia. Naturalmente, na Guia, esta receita de pequenos frangos assados e bem temperados, pode ser encontrada em vários restaurantes, mas registo aqui a minha preferência evidente pelo restaurante O Teodósio. Mais um sítio que repetimos todos os Verões. 

Ainda antes de chegarmos ao Charneco vou referir um outro restaurante que me tinha sido “vendido” como sendo o melhor espaço para experimentar a boa comida tradicional algarvia. Refiro-me ao restaurante Vila Lisa, na Ameixoeira Grande, próximo do Alvor. Um restaurante com uma decoração interessante, com quadros pintados pelo proprietário, e com um conceito que parecia vencedor, uma degustação de pratos regionais, num ambiente que mistura o típico e genuíno algarvio com uma tendência artística e intelectual. E foi assim que foram atraindo milhares de visitantes todos os anos, e mesmo fora do verão, o que fez com que o restaurante tivesse ficado na moda, e não há nada pior. Quando lá fui já estava na moda, mas deu para usufruir do espaço e do ambiente e até foi uma noite divertida, talvez por causa das garrafas de aguardente de medronho e de abafadinho que deixaram na nossa mesa. Mas a verdade é que a refeição propriamente dita, e que, na minha opinião, é o que mais importa - chamem-me conservador - esteve muito aquém das expetativas. Serviram uma série de pratos e todos eles típicos da região, mas já não me pareceu que se preocupassem com o rigor e a qualidade, nomeadamente na escolha da cozinheira, porque as casas cheias já estavam garantidas dia após dia. Foi este o exemplo do restaurante típico mais afamado do Algarve que se revelou como uma tremenda desilusão, apesar de ter sido uma noite super divertida... como já mencionei. Ah, é verdade, o preço também não foi particularmente simpático... pagámos 35 € por pessoa há já 4 anos. 



E, finalmente, depois de muitos outros restaurantes que fomos experimentando ao longo dos anos em toda a região do Algarve, encontrámos O Charneco. Aconteceu no final de agosto de 2017, tinha-me sido recomendado e fiz a reserva pelo telefone. Encontra-se bem no coração de Estômbar, a pequena vila de casas brancas, situada entre Lagoa e Portimão. O restaurante fica ao lado da sede do Clube de Futebol "Os Estombarenses" e mesmo atrás da igreja local, um bonito edifício, também ele caiado de branco, como toda a vila.
O nome aparece sobre a porta, onde se refere também, para que não hajam dúvidas, que se trata de uma Tasquinha.
A decoração é a que se espera de um restaurante típico, sem luxos nem grandes pretensiosismos, quase como se estivéssemos numa casa de família, com fotos e outros objetos pessoais. Na verdade é um espaço descontraído onde nos sentimos bem. 

O atendimento é perfeito, também familiar. O Sr. Charneco andava por lá mas, na altura, já era a filha que assegurava a cozinha... e de que maneira!

Explicaram-nos apenas o conceito, vão trazendo os pratos que prepararam para aquele dia, e só temos que escolher as bebidas, que também estão incluídas no preço do menu. Escolhemos água e vinho branco, que é da casa, sem marca, mas que nos pareceu bastante agradável.
Depois das bebidas e de um pão de fatia, que parecia o típico pão alentejano, mas que era um pão algarvio, começou o desfile de iguarias confecionadas pela cozinheira... que é muito mais chef do que muitos outros que assim se apelidam.

Começaram por uma entrada fria numa Tábua de Queijo e Presunto, e umas tigelas com Azeitonas, com um Picadinho de Febra de Porco com tempero de alho, azeite, vinagre e salsa, com uma Salada de Cenouras à Algarvia, cortadas às rodelas e temperadas com azeite, alho e salsa, e ainda com umas fatias de Muxama de Atum em azeite. A muxama é um produto feito com a mesma receita que os fenícios e os romanos utilizavam há dois mil anos. Resulta de um antigo modo de processamento do peixe, utilizando os lombos do atum, que são curados em sal grosso e depois lavados para retirar o excesso de sal, resultando numa espécie de presunto do mar, e com o aspeto muito semelhante ao do presunto.
Da entrada passámos para a sopinha do dia, uma Tomatada quente com ovo, que em vez de escalfado tinha sido mexido na sopa, que estava perfeitamente deliciosa. 
Os pratos iam-se sucedendo e nem sempre nos diziam do que se tratava, deixaram alguns para que adivinhássemos. Foi o que aconteceu com o prato seguinte... e não adivinhámos. 

Era uma salada fria e tinha o tempero habitual de uma salada de polvo, com cebola picada, azeite, vinagre e salsa, mas, neste caso, com umas batatas cozidas e com uma iguaria que eu nunca tinha provado, as Ovas de ChocoUma delícia, digo-vos eu, que nem aprecio cebola crua e não morro de amores por batata cozida e, ainda assim, considerei este prato um dos petiscos top da noite. 
Ainda nos frios, brindaram-nos com os tradicionais Carapaus Alimados, um prato dos mais típicos do Algarve, com os lombos de carapau bem salgados, quase a parecerem de conserva. Neste caso acompanhavam com rodelas de tomate algarvio, o chamado tomate rosa, e alho cru, para os mais corajosos.
A noite foi passando e o apetite começava já a escassear depois de, nos petiscos iniciais e de forma pouco cautelosa, termos abusado do pão e até do vinho. 

Mas não íamos deixar de cumprir a empreitada até ao fim e, assim, fomos substituindo o vinho pela água e deixámos de molhar o pãozinho. 

Chegaram os pratos quentes, mais um difícil de adivinhar. Eram pataniscas, isso dava para perceber, mas não eram de bacalhau. E, de facto, era um prato menos comum, tratavam-se de Pataniscas de Raia, raras e muito saborosas.
Para quem não fuma e, por isso, não tem necessidade de fazer umas saídas periódicas, recomendo que façam também umas pausas, vão até ao largo da igreja, apanhem ar e estiquem as pernas. E este é um dos momentos-chave para essa pausa... é que ainda falta uma entrada, um prato de peixe e um de carne, e uma sobremesa, ou seja, é como se estivessem agora a chegar ao restaurante. 

E lá veio mais uma entrada quente e esta foi diretamente para o top. Não que se tratasse de algo raro, porque era apenas um prato de Ameijoas à Bolhão Pato, mas com ameijoas fresquíssimas da Ria de Alvor, o que fez com que o resultado final fosse sublime, talvez umas das melhores ameijoas que já provei.
E chegámos aos pratos principais, trocaram inclusive do prato de petisco para pratos grandes. Pena já não termos espaço no estômago, porque ainda vinham aí iguarias excecionais. 

O prato de peixe era um Arroz de Tamboril, bem malandrinho e com um tempero pouco comum, mas fantástico, sem tomate e com bastantes coentros. Uma delícia, se tivesse aparecido uma hora antes seria devorado com sofreguidão, mas, agora, depois de uma hora e meia de jantar, já só comemos quase por obrigação... isto é um conselho para quem resolva viver esta experiência, trata-se de uma maratona e há que dosear o esforço para os últimos quilómetros... e eu que comecei a fazer sprints logo nos primeiros 100 metros.
Faltava apenas o prato da carne, informaram-nos tratar-se da influência árabe na gastronomia algarvia, um Borrego Assado com Hortelã. Felizmente a hortelã aparecia crua a enfeitar o prato e não no tempero, porque eu sou daqueles que não aprecio particularmente a hortelã... talvez num Mojito ou na pasta de dentes. Mas aqui a hortelã podia ser retirada e o borrego ficava divinal, derretia-se na boca, que pena quase não ter um espacinho no estômago... fiz nova paragem e nova volta até à igreja, imprescindível para esta fase final.
E achávamos que tinha acabado, tínhamos lido que eram sete pratos e já havíamos provado oito. Mas ainda havia uma sobremesa, ou melhor, um pijama de sobremesas algarvias, com o tradicional Figo Seco com Amêndoas, uma Tarte de Laranja, uma Tarte de Alfarroba e Canela e, o meu favorito, um Don Rodrigo, o doce regional com fios de ovos e amêndoa, que vem embrulhado num saquinho de papel de prata.
No final veio ainda um café servido num copinho de barro e a conta que, tal como tínhamos lido, foi de 25€ por pessoa... uma bagatela para uma oferta com esta qualidade. 

Terminámos assim um manjar que se transformou numa experiência que nos ficou gravada na memória, com a autenticidade da gastronomia da região, incomparavelmente melhor do que a maioria dos restaurantes algarvios que tínhamos experimentado. 

Ficámos completamente rendidos com tantos paladares e tanta comida, e totalmente satisfeitos com a experiência. Fechámos uma noite, tão rica e tão extraordinária, com a certeza de que teríamos de voltar.

Carlos Prestes