terça-feira, 10 de abril de 2012

Veneza

(As minhas viagens entre 1984 e 2012)

Veneza não é um local que possa ser descrito de forma minuciosa tal a imensidão de detalhes que se revelam em cada ruela, praceta ou canal, o que dificulta quem quer escrever sobre a cidade num espaço de crónicas, como este, onde estou habituado a narrar cada dia e cada trilho das minhas viagens. Porque Veneza é sobretudo um local que nos inspira e nos envolve num turbilhão de sensações que nos conquistam quando por lá andamos. Por isso, não há um guião ou um roteiro recomendáveis, nem há sequer uma duração apropriada para visitar a cidade… cada um deve ficar por sua conta e risco, deixando-se levar ao sabor das emoções que a cidade venha a determinar. Para alguns, será necessária uma semana inteira para que se possa absorver tudo o que a cidade proporciona, mas outros poderão devorar cada segundo, percorrendo a cidade num único dia... e é esse ritmo próprio que deve ser privilegiado, para que a cidade vos possa inspirar, como me tem inspirado a mim ao longo dos anos.

Vou deixar aqui um testemunho que resulta da combinação das várias visitas que fiz à cidade, em épocas e circunstâncias diferentes, nalgumas delas com a devida preparação, mas noutras limitando-me a seguir a torrente de turistas, sem destino definido, percorrendo freneticamente o labirinto de ruas, pontes e canais, que se iam sucedendo. 
Será com base nessa experiência ao longo de quase três décadas, (desde o ano de 1984, na minha primeira viagem a Itália, até 2012, quando lá fomos pela última vez), que farei esta crónica, indicando alguns percursos de referência para que se possa conhecer o essencial da cidade e referindo as principais atrações que a cidade oferece. Como já referi, os percursos que aqui vou aconselhar podem ser feitos de forma mais demorada ou mais rápida, mas penso que um período de dois dias será razoável para que a visita possa ser suficientemente tranquila, incluindo as paragens que vos forem apetecendo e algumas visitas mais minuciosas a certos monumentos. 

Mas com maior ou menor tempo de visita, Veneza será sempre uma cidade inesquecível e o que importa é que cada um de nós encontre a sua forma de descobrir o encanto e a magia que a cidade tem para oferecer, seja percorrendo impacientemente cada ruela ou apenas deixando-se ficar demoradamente nalgum lugar mais inspirador.

Voando diretamente para Veneza, a melhor solução será optar por ficar num hotel em Mestre, a escassos minutos de comboio da cidade de Veneza e com opções de hotéis com uma relação qualidade-preço muito mais favorável do que no centro da cidade (embora já tivéssemos optado, noutras visitas à cidade, por ficar num daqueles hotéis bafientos junto aos canais, mas concluímos que esta solução seria muito mais equilibrada, sobretudo quando precisamos de um quarto familiar para dois adultos e duas crianças).

Desta forma a chegada à cidade faz-se de comboio pela Stazione di Venezia Santa Lucia e assim que chegamos e nos aproximamos do Grande Canal é impossível não nos sentirmos arrepiados pela presença daquele cenário que toda a vida acompanhou o nosso imaginário e que nos surge ali, de repente, à nossa frente. 

E é inevitável ficarmos algum tempo ali parados, pasmados como miúdos às portas de um parque de diversões, contemplando aquele canal com um vaivém de barcos, que mais nos parece uma estrada movimentada; ou os edifícios marginais, com uma arquitetura preciosa; ou ainda, ao fundo, a silhueta da cidade, marcada pelas torres e abóbadas das muitas igrejas que ali nascem.
Separei a malha de ruas do centro por cada um dos bairros em que a cidade se encontra dividida (representados no próximo mapa) e defini, para cada um deles, um percurso pedonal que considerei ser apropriado para assegurar a passagem pelas praças e monumentos de referência, normalmente apinhadas de turistas, mas também por alguns recantos, ruelas ou canais, que se encontrarão quase desertos, e que nos transportam para uma dimensão mais bucólica que a cidade também mostra.

Bairro de Cannaregio:

Começámos por fazer um percurso na zona Norte da ilha, pelo Bairro de Cannaregio, seguindo à esquerda na saída da estação ferroviária, em vez de atravessarmos o Grande Canal que nos levaria para o centro da cidade. Este percurso serve como aperitivo à teia de ruas e canais que encontraremos mais tarde quando nos deixarmos afundar nas profundezas da cidade.
O trilho escolhido, virando à esquerda desde a estação, junto ao Grande Canal e deixando depois a Ponte degli Scalzi do lado direito, levou-nos até à praça do Campo San Geremia, onde encontramos a igreja com o mesmo nome. 
A praça, tal como as ruas que lá desaguam, concentra uma quantidade imensa de bancas para vendas de rua, onde se pode encontrar todo o tipo de artigos capazes de captar o interesse dos inúmeros turistas que por ali circulam. 

A mim, sempre me impressionaram as míticas máscaras venezianas, imagem de marca do requintado e exuberante Carnaval da cidade, mas que me fazem recordar muitas outras referências, pelo mistério que cada máscara esconde, tantas vezes retratado em livros e filmes que me preenchem as memórias. 

À saída da praça atravessámos o primeiro canal pela Ponte delle Guglie e continuámos pela rua Rio Terà Farsetti, na direção do Ghetto Judeu da cidade, um bairro fundamental na história de Veneza.
Chegados ao bairro judaico limitámo-nos a percorrer as ruas labirínticas, passando pelas principais praças, como o Campo di Ghetto Nuovo. O bairro apresenta uma arquitetura pitoresca e cuidada, apesar de ter sido sempre um dos bairros mais modestos de Veneza, mas foi reabilitado no final do século XX.

O Ghetto de Veneza, localizado no bairro de Cannaregio, foi uma zona reservada por imposição governamental para ser ocupada pelos judeus da cidade. Começou por ser apenas um pequeno bairro, o Ghetto Vecchio original, mas foi crescendo, alastrando por outras zonas, o chamado Ghetto Novo, no século XVI e, no século seguinte, o Ghetto Novíssimo

O Campo di Ghetto Nuovo é a praça onde se concentram as principais referências judaicas da cidade, como o Museo Ebraico ou o Chabad.
Apenas como curiosidade, o nome "Ghetto" resulta da deformação do veneziano "getto" que significa "fundição", já que o bairro foi construído num local de uma antiga fundição. E descobri que a atual designação de Ghetto, (em português, “gueto”) como termo genérico para um local onde uma minoria está separada do resto da sociedade, provém originalmente do nome deste bairro veneziano.

No regresso à estação continuámos a deambular pelas ruelas apertadas e atravessámos de novo a Ponte degli Scalzi, com vista privilegiada para o canal onde as fachadas dos edifícios marginais se revelam como autênticos monumentos, exibindo uma imagem que é exclusiva desta cidade.

Bairros de Santa Croce e San Polo:

O percurso seguinte foi feito pelos Bairros de Santa Croce e San Polo, começando por cruzar o Grande Canal pela Ponte della Costituzione, (a nova obra de Santiago Calatrava, que abriu uma polémica em torno da sua modernidade e de que forma se integraria no classicismo arquitetónico local), deixando-nos depois a vaguear sem destino fixo, seguindo os impulsos que nos fariam escolher uma rua ou um canal por onde continuar a caminhada. 
Foi assim que fomos atravessando estes dois importantes bairros da cidade de Veneza, passando pelos locais mais interessantes e fazendo algumas paragens conforme nos ia apetecendo, até atingirmos a zona emblemática do Rialto,seguindo aproximadamente o itinerário representado neste mapa:
Os trajetos escolhidos percorrem a malha de caminhos que se formam ao longo da cidade, constituídos por ruelas, quase sempre estreitas, por um conjunto imenso de pontes que vão atravessando os canais, ou pelas muralhas ou paredões que nos conduzem junto às margens de cada canal - designados como la fondamenta veneziana - que nos vão proporcionando algumas das paisagens mais bonitas e que são a imagem de marca da cidade.

Começámos por percorrer as margens de um dos canais mais aprazíveis, o rio del Gaffaro (ou rio del Magazen) que delimita os bairros de Santa Croce e de Dorsoduro.

Voltámos depois pelo mesmo canal mas pela margem oposta, seguindo o paredão designado por Fondamenta Minotto, até atingir o rio de la Cazziola e de Ca' Rizzi, e seguindo pela Fondamenta dei Tolentini chegámos de novo ao Grande Canal.


Já de novo no Grande Canal, mas na margem oposta à da estação ferroviária, percorremos o paredão pelo fondamenta de San Croce, passando pela Chiesa di San Simeon Piccolo, e continuando por essa rua marginal que nos permite contemplar algumas fachadas dos palazzos que se vão dispondo ao longo da margem Norte do maior canal da cidade.

Voltámos depois a mergulhar no labirinto de ruas que nos levam entre as praças movimentadas e os canais mais bucólicos, continuando sempre ao sabor do nosso instinto e sem hipótese de obedecer ao trajeto de qualquer mapa... seguindo apenas alguma orientação, de quando em quando, através das placas que indicam a direção de Rialto.

Podia referir alguns dos canais, ruelas ou pracetas que fomos atravessando ao longo do percurso que fizemos até à ponte de Rialto, como aliás está representado no mapa que juntei lá atrás, mas considero que existem muitos outros percursos alternativos para atingir esse mesmo destino. Por isso, em vez de identificar os locais de passagem vou somente deixar algumas das imagens registadas ao longo desse caminho.


Somente como exceção, das várias preciosidades por onde fomos passando, menciono aqui a Basílica de Santa Maria Gloriosa dei Frari, uma das maiores igrejas de Veneza, que está localizada no Campo dei Frari, bem no coração do bairro de San Polo, num terreno que foi atribuída à Ordem dos Franciscanos no século XIII para que ali pudessem erigir uma igreja, mas só no século seguinte o edifício foi terminado. Entretanto a igreja original foi sendo reconfigurada até ser obtido o atual edifício que foi concluído em meados do século XV. Trata-se de uma igreja imponente, construída no estilo gótico italiano, utilizando forra de tijolo e com um campanário de 83 m de altura, que é o segundo mais alto da cidade depois do campanário de São Marcos.

Logo depois voltámos de novo aos recantos formados pelos belos canais desta parte de Veneza, por vezes tão misteriosos e, uma vez mais, praticamente indescritíveis, como quase toda a cidade, onde prevalecem sobretudo as emoções que cada um consegue experimentar num local mágico e encantador como aquele, apenas pela oportunidade de ali estar.

Continuando o nosso trajeto até ao Rialto passámos pelo Campo San Polo, uma das maiores praças do bairro com o mesmo nome, que nos surgiu inesperadamente quase deserta, talvez pela ausência de atrações turísticas mais apelativas.
Fizemos a entrada na zona do Rialto pela Riva del Vin, junto ao Grande Canal, chegando assim até à famosíssima ponte veneziana e a um conjunto de outras preciosidades arquitetónicas que fazem deste local um dos principais polos de interesse turístico da cidade.
Chegámos pela Riva del Vin, a muralha do lado Norte do Grande Canal, atravessando esplanadas com uma enorme afluência de turistas, numa envolvente emoldurada pelos característicos palazzos venezianos e com uma presença constante de ancoradouros em paliçadas com toda a variedade de embarcações, onde se destacam as típicas gôndolas. 


A Ponte de Rialto é a ponte em arco mais antiga e mais famosa sobre o Grande Canal e foi mesmo, durante séculos, a única ligação permanente entre os dois lados do canal. Inicialmente era apenas uma ponte flutuante mas a evolução e a importância do mercado de Rialto, junto à margem do canal, aumentou consideravelmente o tráfego fluvial naquela zona e, por isso, foi criada pela primeira vez uma ponte fixa, que inicialmente era feita em madeira, e hoje é a magnifica ponte que é uma das principais imagens de marca da cidade dos canais.
Neste momento as duas rampas inclinadas que se cruzam num pórtico central estão completamente ocupadas por espaços de comércio, libertando um corredor central e dois passadiços laterais para passagem de quem quiser fazer a travessia do canal. 
A ponte atual, desenhada pelo arquiteto Antonio da Ponte, foi construída em pedra no final do século XVI e é formada por um único arco. Mas num olhar mais técnico, talvez por deformação profissional, refiro que os registos mostram que a ponte está apoiada em 600 estacas de madeira e que este projeto de engenharia foi considerado demasiado audaz naquela época, o que criou dúvidas na comunidade científica quanto à garantia da sua estabilidade estrutural. No entanto, a Ponte de Rialto ainda hoje se ergue sobre o canal, sem que tivessem existido quaisquer registos de insegurança ao longo dos anos.
Ainda na zona de Rialto encontramos outras atrações desta cidade. Na margem Norte, na praça do Campo San Giacomo di Rialto, destaca-se a igreja com o mesmo nome da praça, que é também conhecida por Chiesa di San Giacometo. É considerada a igreja mais antiga da cidade de Veneza e a sua história está ligada ao Mercato di Rialto, apresentando, na sua fachada, a torre do sino com um enorme relógio que foi utilizado como referência para os horários praticados no mercado.
O Mercato di Rialto está concentrado junto à margem do canal, mas estende-se desde a Ponte e atravessa o Campo San Giacomo e o Campo de la Pescaria.

A zona principal junto à margem funciona como mercado de peixe e mercado de frutas e vegetais, enquanto os espaços envolventes oferecem sobretudo a venda de artigos tradicionais e souvenires, mais procurados atualmente pelos turistas.

Trata-se de um mercado muito típico, onde circula uma multidão animada que se faz da mistura de turistas, venezianos e comerciantes, para comprar e vender, ou apenas para vaguear por entre milhares de vozes que animam este local pitoresco de muitas cores e aromas.

Bairro de Dorsoduro:

O próximo percurso que aqui recomendo começa cruzando a Ponte Rialto e atravessa uma parte da zona de San Marco, seguindo na direção do Bairro de Dorsoduro.
Uma vez mais o itinerário que aqui registo não é mais do que uma referência, existindo muitos outros caminhos que podem ser escolhidos para cumprir o mesmo objetivo, que era percorrer o bairro de Dorsoduro até atingir a grandiosa Basílica de Santa Maria della Salute, uma das imagens de marca da cidade.

Mal atravessámos a ponte de Rialto chegámos ao bairro de San Marco pelo Campo San Salvador, um local de passagem imprescindível na ligação entre o Rialto e a Piazza San Marco, os dois locais mais marcantes da cidade. 

Deixámo-nos levar até zonas mais profundas do bairro de São Marco, evitando sempre os caminhos onde se sinalizava a direção da principal praça do bairro e da cidade, que visitaríamos mais tarde. Acabámos assim por chegar ao Grande Canal junto à Ponte dell'Accademia, onde se podem observar algumas das paisagens mais bonitas do canal, com os grandes palazzos que nascem sobre as águas e a cúpula da Basílica de Santa Maria della Salute.


Atravessámos o Grande Canal pela Ponte dell'Accademia atingindo assim o bairro do Dorsoduro. Virando à direita, deixando a península onde emerge a Basílica de Santa Maria della Salute para mais tarde, voltámos a mergulhar na teia ruas e fondamentas que ladeiam os canais, subindo e descendo as escadarias das pontes, e cruzando ocasionalmente alguma praça com uma igreja ou monumento de maior interesse arquitetónico.

Abro aqui um parêntese com um objetivo prático. A cidade de Veneza não está devidamente preparada para o acesso de quem tem limitações de mobilidade, definindo-se, para tal, alguns percursos, pedonais e de barco, que permitirão que todas as pessoas possam conhecer o essencial da cidade. No entanto, embora não seja habitualmente enquadrado como um caso de mobilidade condicionada, muitas são as pessoas que viajam, ou já viajaram, com carrinhos de bebé. Essa experiência aconteceu-nos apenas na visita que fizemos em 2000, quando a Beatriz tinha só dois anos e ficava tranquila no seu carrinho, enquanto que os pais a tinham de elevar para subir e descer as escadas de cada ponte… e nunca Veneza teve tantas pontes como daquela vez. A viagem não deixou de ser encantadora, apesar das bolhas nas mãos no final do dia. De qualquer maneira, queria dizer, em tom de conselho, guardem Veneza para quando os pequenotes já tiverem energia para subir escadas pelo próprio pé (bem, aos dois anos a Bi já andava perfeitamente… mas estava bem mais confortável sentadinha e acho que até lhe dava um certo gozo ver os pais a fazerem constantemente aquelas escaladas).

Voltando ao bairro de Dorsoduro seguimos aproximadamente o percurso registado no mapa, passando por alguns locais de maior importância como a Chiesa Di San Barnaba e o Campo Santa Margherita.

Continuando ainda junto aos canais mais pequenos, chegámos até à margem sul da península, com vista para a ilha da Giudecca, que fomos percorrendo até à Punta della Dogana junto à imponente Basílica de Santa Maria della Salute.

Uma das principais atrações desta península, para além da própria Basílica, é a maravilhosa vista sobre o bairro de San Marco, que é dominada pela presença altiva do seu campanário.
Mas voltando à Punta della Dogana (ou Ponta da Alfândega), encontramos a Basílica de Santa Maria della Salute que foi construída no século XVII, e tem uma origem associada à pior fase da história de Veneza, quando os seus habitantes foram dizimados devido à peste negra.

A Basílica surgiu como promessa do Patriarca e do Doge (o governante) da cidade, de que iriam erguer uma igreja e dedicá-la à Virgem Santíssima, quando a cidade fosse declarada livre daquela enfermidade. A igreja serviria assim para perpetuar a memória de gratidão pública à Virgem por esse benefício.

Quando a epidemia da peste negra terminou tinham morrido 80.000 venezianos, entre os quais morreram também o Doge e o Patriarca. Ainda assim, em 1631 começou a ser construída na Punta della Dogana, a primeira edificação que, após diversas alterações, ampliações e restauros, se transformou na Basílica que hoje lá encontramos.

A Basílica é de uma enorme beleza arquitetónica sobretudo pelo enquadramento com a sua envolvente, o que não é totalmente percetível quando nos encontramos junto aos seus portões de acesso. É sobretudo a partir do bairro de São Marcos que a Basílica se torna visível em toda a sua dimensão e é daí que surge mais bonita e majestosa.
Ao sairmos o bairro do Dorsoduro voltámos a cruzar o Grande Canal pela Ponte dell'Accademia e entrámos de novo no bairro da San Marco.

O percurso relatado até aqui, por estes quatro bairros da cidade, pode consumir um dia completo, naturalmente, em função do ritmo que seja imposto. De qualquer forma, onde e quando quisermos interromper a caminhada, voltando ao hotel, não será necessariamente obrigatório percorrer a pé todo o caminho de volta, o que poderia ser penoso.

Para esse regresso à estação ferroviária (ou ao hotel… para quem fique alojado na cidade) e a volta posterior para retomar o percurso, podemos recorrer a um dos muitos Vaporettos que percorrem o Grande Canal. O Vaporetto é uma embarcação típica da cidade de Veneza e é também o principal meio de transporte entre os vários bairros, através do Grande Canal, e de acesso às várias ilhas que formam a cidade. Existem em Veneza 19 linhas regulares destas embarcações, cujo nome, Vaporetto, se inspira nos antigos barcos que executavam o mesmo serviço e que funcionavam a vapor. 

Registo apenas que os preços não são baratos, sobretudo se for uma família grande, o que faz com que a alternativa de fazermos a volta de regresso caminhando seja, na minha opinião, bastante razoável. De qualquer forma, nem que seja pelo menos uma vez, recomendo um trajeto neste tipo de embarcação tão característica da cidade de Veneza.

Bairros da San Marco e Castello:

Voltando para o lado Norte da Ponte dell'Accademia entramos de novo no coração mais palpitante da cidade de Veneza, nos bairros San Marco e Castello.
Percorremos os trilhos assinalados no mapa, em torno de uma autêntica teia de trajetos possíveis, passando necessariamente pelas principais praças, onde se erguem igrejas e monumentos, como é o caso da igreja de Santa Maria del Giglio, do Teatro la Fenice e do Campo San Moisè, ou pelas ruelas e canais mais concorridos e com maior concentração de lojas, onde encontramos verdadeiras torrentes de turistas que por ali passam a qualquer hora do dia ou da noite, devido à proximidade do centro mais nevrálgico da cidade, a Piazza San Marco.

Escolhemos desviar primeiro até à marginal do Grande Canal passando pelo jardim da Riva degli Schiavoni, onde se podem contemplar algumas das mais bonitas paisagens sobre as ilhas e penínsulas do lado oposto do canal.
Quisemos ainda passar junto ao Bacino Orseolo. Mesmo por detrás da Piazza San Marco forma-se uma pequena lagoa ou bacia (bacino em italiano), que é usada como ancoradouro de gôndolas. Toda a bacia está rodeada por paredões o que permite um acesso fácil e faz com que seja um local de passagem frequente de turistas.

Chegámos finalmente à Piazza San Marco, o principal polo de referência da cidade. Fizemos a entrada por uma das arcadas, contemplando a bonita imagem ao fundo, da Basílica e do Campanário.
Do lado esquerdo da Basílica fica a, também famosa, Torre do Relógio. Trata-se de um edifício renascentista composto por uma torre central, construída no final do séc. XV. A face do relógio é de ouro e esmalte azul e marca a hora, o dia, as fases da lua e do zodíaco. O relógio também é equipado com um mecanismo de caixa de música que toca a cada hora, enquanto se abrem os painéis laterais e deixam passar um carrossel de estátuas de madeira.

O relógio é adornado pela estátua do Leão de São Marcos, um símbolo veneziano, e no seu topo encontra-se o terraço dos mouros, com duas estátuas de bronze de dois homens, os Mouros, que marcam as horas do meio-dia e da meia-noite, batendo com os seus martelos no grande sino no centro do terraço.
Na piazza San Marco fica a maior e mais famosa das igrejas da cidade, a Basilica di San Marco, um dos melhores exemplos da arquitetura bizantina. A igreja desenvolve-se em planta numa cruz grega, baseada nos exemplos das Basílicas de Santa Sofia e dos Apóstolos, ambas em Constantinopla (atual Istambul).

A Basílica é a sede da arquidiocese católica romana de Veneza e fica localizada bem ao lado do Palácio dos Doges, fazendo parecer que os dois monumentos se encontram integrados no mesmo edifício. O interior da basílica é composto por três naves longitudinais e três transversais, de onde emergem cinco cúpulas. 
O palácio dos Doges ou Palazzo Ducale é um dos símbolos da cidade de Veneza e uma obra-prima do gótico veneziano. Foi fundado no ano 812 mas teve várias intervenções de reconstrução e reabilitação ao longo dos séculos. A sua construção foi inspirada na arquitetura bizantina e é um bom exemplo das relações comerciais e culturais à época entre a República de Veneza e vários países europeus.

Aquele era o edifício da sede do Doge e dos tribunais da cidade, mas quando Veneza foi anexada ao reino de Itália o edifício transformou-se num museu e assim permaneceu até aos dias de hoje, abrigando atualmente a sede do Museu do Palazzo Ducale, um dos mais importantes da cidade que inclui obras dos mais famosos mestres venezianos, como Tintoretto, Tiziano, Bassano, Veronese, entre outros.
Nas arcadas dos edifícios de San Marcos surgem vários cafés clássicos de grande charme, sempre com as suas esplanadas, seja Verão, seja Inverno, onde atuam as bandas residentes, sempre com instrumentos de sopro, um piano e um contrabaixo. 

Nas minhas viagens à cidade arrisquei algumas paragens numas destas esplanadas apenas para um café, normalmente um café americano de cafeteira, uma paragem que vale pelo momento e jamais pelo café, pago a peso de oiro.

Um desses cafés é um clássico desta cidade, o Caffè Florian, que foi fundado em 1720 e é mesmo a cafetaria ainda existente mais antiga de Itália e uma das duas mais antigas de toda a Europa (em conjunto com o Café Procope em Paris... onde já tive o privilégio de jantar há uns bons anos atrás). 

O Florian tem um lastro histórico incontornável que seria difícil transcrever. Assim, deixo aqui apenas alguns nomes de frequentadores assíduos, como Lord Byron, Marcel Proust e Charles Dickens. Durante anos o Caffè Florian era a única cafetaria que permitia a presença de mulheres, o que terá certamente atraído um dos ilustres frequentadores, Giacomo Casanova, o escritor veneziano que ficou famoso sobretudo pela sua vida de libertinagem. 
Dominando a piazza salienta-se a grande torre do campanário da Basílica, il Campanile di San Marco, um dos símbolos da cidade de Veneza.

O Campanário fica num canto da praça, perto da entrada da basílica. A torre, que atinge 98 m de altura, é quadrangular, com uma largura de 12 m, e é revestida a tijolo, idêntica aos vários campanários da cidade, num estilo marcante da arquitetura veneziana. No topo da torre assenta o campanário propriamente dito, com arcos em pedra, onde estão alojados cinco sinos. A torre é ainda coroada por uma agulha piramidal, no extremo da qual se encontra um cata-vento dourado com a figura do Arcanjo Gabriel. 
A torre é visitável com acesso por elevador, constituindo o melhor local para observar a paisagem da cidade. É dali de cima que conseguimos ver algumas das praças mais extraordinárias sem a pressão e a barulheira das grandes multidões. Conseguimos, assim, contemplar a própria Piazza San Marco de uma forma diferente, com a esplanada do Caffè Florian do lado esquerdo.
Da vista completa que desfrutamos do topo do campanário encontramos, do lado do mar, junto ao cais das gondolas, duas referências importantes da cidade. As colunas de mármore rosa e granito, que surgem como portais da Piazza San Marco, com as estátuas del Leone Alato e del Todaro
E, mais à frente, a ilha de San Giorgio Maggiore dominada pela bonita igreja com o mesmo nome, e pelo seu campanário no mesmo estilo veneziano.
Ainda junto ao mar estende-se um longo paredão, a Riva degli Schiavoni, sempre preenchido por milhares de turistas, e onde se encontram ancorados todos os tipos de barcos mais característicos desta cidade, desde as gôndolas aos vaporettos.


A Piazza San Marco nem sempre nos surge da forma como a encontrámos nesta visita em abril de 2012. Desta vez, tal como em todas as viagens que lá fiz durante o Verão e a Primavera, toda a praça estava totalmente desimpedida e sem quaisquer limitações devido às cheias que massacram a cidade durante alguns Invernos mais chuvosos ou com marés mais vivas. 

Mas, em dezembro de 2000, a nossa experiência foi bem diferente, quando os vestígios da chamada Aqua-Alta eram evidentes, sendo necessário seguir por passadiços de madeira sobrelevados, para atravessarmos as zonas mais baixas da Piazza San Marco. 

“Acqua-Alta, Acqua-Alta”... ecoavam as vozes que acompanhavam o som dos sinos e das sirenes ao anunciarem o evento. O céu ficou negro e os turistas fugiram, devolvendo a cidade aos venezianos, que começaram a aparecer de chapéu de chuva e galochas... e a nós próprios, que teimámos em ficar, e que assim vimos surgir alguns traços escondidos de mistério e encantamento, de tantas memórias ficcionadas sobre este local. 

Junto ao paredão da Riva degli Schiavoni e ao extenso ancoradouro, onde as gôndolas se protegem, o mar preparava-se para galgar a piazza, numa envolvente rara e encantadora... e uma paisagem melancólica ia-se formando, mostrando a silhueta difusa da bellissima isola di San Giorgio Maggiore.
Saindo de praça de São Marcos continuámos com destino às restantes ruas e canais do bairro de San Marco entrando também pelo bairro vizinho do Castello.

Logo um pouco depois de abandonarmos a piazza pela Riva degli Schiavoni, cruzamos o canal que tem o nome de Rio de Palazzo ou Rio de Canonica, conhecido pela famosa Ponte dei Sospiri

Ponte dei Sospiri, que é conhecida em todo o mundo e é um dos símbolos da cidade, liga o Palazzo Ducale à Prigioni Nove, o primeiro edifício em todo o mundo a ser construído para ser utilizado como prisão. O nome, de Ponte dos Suspiros, foi-lhe dado, segundo a lenda, porque, em tempos remotos, os prisioneiros suspiravam enquanto a atravessavam e espreitavam pelas pequenas janelas, numa ocasião que seria a última oportunidade para verem o mundo exterior, antes de serem encerrados nas masmorras da Prisão Nove, onde cumpririam penas perpétuas.

Esta ponte é uma inspiração e existem mesmo duas réplicas da Ponte dos Suspiros, ambas em Inglaterra e, curiosamente, pertencem a duas faculdades com o mesmo nome, chamadas St. John's, uma em Cambridge e outra em Oxford.
Continuando pela movimentada Riva degli Schiavoni chegámos à estátua de Victor Emmanuel II e virámos à esquerda, onde entrámos numa zona bastante bonita cheia de canais apertados por onde passam obrigatoriamente os circuitos feitos pelas gôndolas. 
Passámos pela Igreja de São Zacarias e chegámos a um dos canais mais frequentados, com passagem obrigatória no circuito das gôndolas, o Rio di S. Provoio, que nos leva depois ao Campo San Provolo.


Nesta viagem mais recente não voltámos a andar de gôndola, pois já tínhamos tido essa experiência há uns anos atrás.

Nessa altura, com a Beatriz ainda pequenina, quisemos experimentar um passeio numa daquelas embarcações míticas, com a ilusão de que se trataria certamente de um passeio sublime e até romântico. Mas, na verdade, devido ao excesso de turistas, e até de gôndolas, acaba por se revelar muito menos interessante do que gostaríamos.

Assim, foi apenas mais um circuito turístico dos muitos que a cidade oferece, sem transmitir a magia e o encantamento que se esperariam… ainda assim, a nossa Bi não deixou de assinalar devidamente este momento singular na sua vida com um grande olá para a fotografia.
         
Continuando pelos canais do bairro do Castello chegámos, entretanto, a uma das maiores praças deste bairro, o Campo de Santa Maria Formosa, com a sua igreja, a Parrocchia Santa Maria Formosa.

Mais tarde seguimos ainda pelo bairro do Castello na direção do Rialto, e depois, já no retorno até San Marcos, passámos também por outros pontos interessantes da cidade, como o Campo San Bortolomio e o Campo de la Guerra, terminando já próximo da Basílica de San Marcos.

E terminámos assim um percurso quase completo pela cidade dos canais, uma cidade que nos fascina pela sua arquitetura, os edifícios e os palazzos, as ruas e canais, e as muitas torres de igreja que marcam a silhueta da paisagem. 

É uma cidade indiscutivelmente encantadora que resulta da mistura entre os recantos mágicos e bucólicos, tal como se imaginaria num local cheio de canais, e as zonas mais movimentadas, sob grande pressão de um turismo massivo, quase sufocante, que acaba por condicionar a forma como esta cidade nos toca. 

No global podemos considerar que uma viagem a Veneza será sempre imprescindível e é certamente inesquecível. Mas, se a cidade não fosse aquele parque de diversões em que os turistas a transformam diariamente, a experiência poderia ser avassaladora e, certamente, muito mais comovente.


Carlos Prestes